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Opinião

O provisório que nos permite ver mais longe

Padre Nuno Santos - Reitor Seminário Maior de Coimbra

Sem andaimes dificilmente construímos uma casa, sem andaimes não teríamos Igreja nem restauros, sem andaimes não seria possível pintar o teto da Capela Sistina, nem a Cúpula da igreja da Sagrada Família no Seminário Maior de Coimbra.

No essencial um andaime é uma estrutura provisória que permite chegar mais alto.

Gosto desta ideia de provisório, de acessório, de suporte… associado a elevação, a chegar mais alto. Gosto de pensar o quanto o provisório pode ser necessário para alcançar o eterno.

A nossa vida está cheia de provisórios essenciais, de pormenores que fazem toda a diferença, de pequenas estruturas que determinam grandes passos.

Daí que haja algo de essencial e de relativo, de fundamental e de provisório, de necessário e de dispensável… em cada vida. Uma gramática que se reclama existência(s).

Daí que haja espaço para perguntar pelos nossos andaimes: Quem são? Como os (re)conhecemos? Quem nos faz chegar mais longe e mais alto?

Devemos ainda fazer outras perguntas: de quem sou andaime? Quem ajudo a crescer e a chegar mais alto? De quem sou suporte?

… até que um dia chegará a nossa vez de ‘sermos retirados’ para ficar a ‘obra de arte’ à vista de todos.

ANDAIME

Lu Lessa Ventarola

As fachadas do Seminário Maior de Coimbra estão, hoje, tomadas por andaimes. Por detrás das estruturas de ferro, que se erguem do chão até o ponto mais alto do telhado, vislumbram-se as paredes cruas, sem tinta ou massa de reboco.

A Igreja, assim, parece que nos diz: “Vês? Também eu não estou terminada. Também eu preciso de uma pausa para olhar para dentro e buscar, uma vez mais, renovação. Ou: sentir o vigor do novo, de novo. Também eu necessito descer o balde fundo no meu poço interno para trazer à superfície águas primordiais – que tanto saciam quanto geram mais sede.” Sede de Inteireza, de Verdade – e, deste lugar, a Igreja nos convida a também, do mesmo modo, cuidarmos daquilo que nos estrutura e rejuvenesce.

A grande Beleza de uma renovação não está no resultado concretizado na dimensão do aparente e sim no quanto este reflete o cuidado com aquilo que está na camada abaixo, com aquilo que não se vê. Se assim fosse, no Seminário, bastaria passar uma boa mão de tinta – et voilá! – prontos para seguir. Mas não, é preciso um esforço real de revisão – de se olhar a partir de outros prismas; e, também, de não temer ser olhado nas suas entranhas, sem tinta ou verniz. Afinal, como sabermos o que em nós é indestrutível se não nos dispusermos, minimamente, à destruição? Não é assim que o trigo nasce e se transforma em pão – com a total entrega da semente à terra?

A Igreja sabe que, neste processo de renovação, precisamos sempre do outro; e, assim, como uma semente, entrega-se à terra do coração dos homens. Estes sobem pelos andaimes e, com a intuição de que só crescemos verdadeiramente juntos, recuperam as paredes da fachada desde seu interior. A palavra -andaime- usada hoje para essas estruturas de construção civil, vem do árabe: ad-da’aim, e significa pilar, coluna. E a Igreja, revigorada, oferece firme pilar para o crescimento de cada um que deseje caminhar sobre a terra de um mundo mais humano e solidário.

Andaime.
Anda, vem –
Ser novo,
De novo.

Um verão pandémico... A abrir as portas que se seguem

Padre Nuno Santos - Reitor Seminário Maior de Coimbra

Chegamos às férias com a sensação estranha de que as coisas estão mesmo diferentes. O novo normal é pouco normal. Faltam as festas das cidades e as das paróquias, faltam os almoços e os jantares com muitos amigos e familiares, faltam casamentos e batismos... faltam as viagens longas e os aeroportos cheios, faltam os restaurantes a abarrotar e as praias cheias.. faltam, sobretudo, os abraços.

Estamos mais recatados, menos acelerados, mas nem por isso mais descansados... Há receio de contaminar ou ser contaminado, há abusos no incumprimento das regras... Há insegurança e, sobretudo, incerteza.

A pandemia acelerou as dificuldades e evidenciou as desigualdades sociais. O número dos desempregados aumenta e muitas empresas abrem falência. Depois do número de mortos, agora as preocupações estão voltadas para os vivos – com que qualidade e esperança vivem muitas pessoas? Depois do verão tudo se vai agudizar.

Há muito dinheiro a chegar da União Europeia, mas a corrupção generalizada e as agendas políticas, farão com que seja tudo para os mesmos de sempre, sem estratégia de sustentabilidade económica nem capacidade para ajudar as PME’s e os projetos que criam mais valia local. O que a corrupção e a incompetência não ‘destruírem’ a burocracia cá estará para que ‘os mais pequenos’ fiquem a ver navios!

Será tempo de anúncios políticos, de muitos projetos em papel, de muitas estatísticas maquilhadas... quando se for ver... quase tudo foi uma ilusão e uma estética (reedições do passado).

É tempo de reinventar modelos e de tentar recomeços. Os mais pequenos não podem contar com muitas ajudas, mas podem ajudarem-se mais uns aos outros. E são muitos os projetos que ‘nasceram’ neste tempo de pandemia, dentro e fora do mundo eclesial. Há esperança no ar.

E a Igreja? Como será capaz de se reinventar mantendo a sua identidade? Ficará animada apenas pela sua enorme capacidade social? Conseguirá iluminar a vida concreta com a Luz do Evangelho e a Força de Deus? Ou cairá no autorreferencialismo clerical e num tradicionalismo forte, mas insuficiente para alimentar a vida por dentro!

Também a Igreja ficará pressa em burocracias inúteis, regras criadas à margem do evangelho, itinerários catequéticos que criam mais ateus que cristãos... ou será lugar de acolhimento, de escuta, de comunhão e de eternidade?

E as nossas missas, mais confinadas ou desconfinadas, serão lugares comunitários onde se celebre a vida plena entre a fragilidade e o pecado que nos habita e a misericórdia e a compaixão de Deus ou espaços de ‘guerrilhas’, de exibição e de ‘poder’? Serão encontros com a Palavra de Deus e com o Alimento da Eucaristia ou continuaremos a insistir no prémio para os perfeitos e no lugar dos ‘bem comportados’ (que não se querem contaminar com os ‘pobres’ e os ‘pecadores’).

Só posso acreditar numa Igreja de portas abertas, a celebrar-se nas ruas concretas das vidas de hoje, sem aceção de pessoas... onde o Zaqueu e a prostituta, o cego e a samaritana, a Marta e a Maria, o Pedro e o Judas... todos são convidados para a Ceia do Senhor.

A não ser que seja outra religião diferente! Sem evangelho nem o Cristo Incarnado! Os fariseus do tempo de Jesus sempre existirão. Também cumprem a sua missão e podem ser um estímulo. No cristianismo não seguimos os fariseus apenas Cristo.

Somos todos filhos de Deus e é n’Ele que temos de colocar todos a referência e a esperança que só Ele nos pode dar. ...afinal todos devemos ser apenas peregrinos do eterno.

As mulheres na recomposição do mundo

Ana Melo

Abordar a questão das mulheres, o seu papel na sociedade ou as transformações que têm ocorrido, no reconhecimento dos seus direitos, é um tema tão vasto quanto complexo.

Enquanto mulher não posso deixar de olhar com uma certa perplexidade para o facto de existir um dia no calendário instituído como o “dia da mulher”, ou que exista um corpo científico de estudos feministas, ou mesmo que seja necessário uma comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Contudo, não podemos ser alheios às marcas da história em que a desigualdade era uma realidade presente e ao trabalho, que ainda hoje é necessário desenvolver, para que as mulheres se envolvam de uma forma mais ativa na construção de uma sociedade mais moderna, justa e equitativa.

Mulheres e homens são diferentes. A afirmação do direito à igualdade não procura eliminar as diferenças existentes entre mulheres e homens. Não se pode confundir diferença de género com desigualdade de género, na medida em que não têm o mesmo significado. Desigualdade assenta na discriminação e opõem-se à igualdade; por seu lado, diferença de género é um dos princípios sobre o qual assenta a igualdade de género, pois é o reconhecimento e valorização das diferenças que permite alcançar a igualdade.

Embora a igualdade entre Mulheres e Homens seja um princípio da Constituição da República Portuguesa, a invisibilidade das mulheres em muitas esferas da sociedade continua a impedir que a Igualdade conquistada na lei tenha os necessários efeitos práticos. Dados estatísticos recentes demonstraram a persistência de uma fraca representação feminina na tomada de decisão, a sua maior vulnerabilidade à pobreza e exclusão social, a sua precariedade laboral e uma afetação não equitativa das responsabilidades familiares e domésticas (Igualdade de Género em Portugal,2018).

A defesa dos valores da igualdade de género através da educação, promoção da igualdade de tratamento e de oportunidades no acesso ao mercado de trabalho, bem como a conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal, através da criação de condições de paridade na harmonização das responsabilidades entre homens e mulheres, deverá ser implementada salvaguardando o respeito pela diferença não a transformando em desigualdade.

Maria de Lourdes Pintasilgo, figura incontornável no pensamento e reflexão sobre o papel da mulher na sociedade, defende uma “igualdade que não descaracterize e uma diferença que não humilhe”, reafirmando que a igualdade de todos perante leis e oportunidades é a expressão fundamental do reconhecimento da pluralidade humana a todos os níveis. Não se trata já dos direitos do homem, masculino, branco, etc., mas dos direitos «[d]as pessoas concretas que habitam o planeta». (Leonor Beleza, 2007).

Esta visão mais ampla da participação das mulheres tem implicações na forma como se aborda a sociedade e a própria democracia que, para ser genuína, tem que ser exercida em igualdade por mulheres e por homens, em todas as suas instâncias e circunstâncias e em todos os seus momentos, isto é, tem que ser uma democracia paritária, reconhecendo a uns e a outras a riqueza e a originalidade do seu contributo e da sua identidade pessoal e social.

A visibilidade das mulheres será portadora de uma nova ordem nas relações sociais e poderá, como Maria de Lourdes Pintasilgo refere, conduzir a “uma recomposição do mundo”, em que mulheres e homens, encarados e respeitados nas suas identidades próprias, gozarão efetivamente da mesma dignidade e dos mesmos direitos em plena igualdade e em plena liberdade (Regina Tavares da Silva, 2012).

Êxodo

Rui Fernandes

“...Os egípcios pressionaram o povo para que partisse depressa da terra, pois diziam: Morreremos todos! O povo levou a sua farinha amassada antes de levedar, e sobre os ombros as suas amassadeiras envoltas nos seus mantos...” Ex12 33-34

A construção do cânone bíblico cristão, é um bom roteiro para lermos o momento em que estamos mergulhados e seguramente um mapa viável para reencontrar o lugar no mundo e na história dos homens, para uma Igreja operativa e transformadora numa realidade que se desenha assim diante dos nossos olhos: um oceano de incerteza e dúvidas! Como é que se sai daqui?

Depois do poema inicial com todas as maravilhas da criação, o itinerário do povo de Deus segue logo com uma grande momento de crise e desinstalação: o Êxodo. As pragas do Egipto são o castigo para um faraó em recusa por deixar partir os conduzidos de Moisés para a terra prometida, a saída é apressada e as provações do deserto são violentas e questionadoras do propósito e viabilidade da viagem. Se alguém quiser reconstituir o ADN da proposta cristã para o mundo, aqui tem a primeira constatação: nós estamos em saída desde o início!

A entrada de Cristo na História não só confirma esta natureza que vem desde a primeira aliança, como a acelera de maneira vertiginosa. O Evangelho é todo um receituário de novas saídas, é verdadeiramente o mundo ao contrário: Ele escolhe os mais fracos, confirma os pobres e humildes, prioriza os que menos contam, apresenta-se para sofrer e resguarda-se dos louros e glórias dos homens, desvaloriza o poder e exalta o serviço: Ele é saída desde o início!

Estes dias da pandemia parecem ter sobre nós um efeito paralisante, como se o confinamento fisíco a que estamos obrigados fosse também uma cerca a outras dimensões; mesmo para nós cristãos que precisamente devíamos lembrar à cabeça que existimos bem para além da dimensão material. Mas o que é ainda mais inquietante é que esta paralisia parece desafiar diretamente o que somos como instituição terrena. Sobretudo para nós, Igreja de Cristo neste canto do globo, parece que estamos agarrados ao imobilismo da dimensão mais tectónica e rígida das nossas possibilidades operativas.

O Papa Bento XVI bem lembrou que o ínicio é um encontro, e o lugar é o coração do homem! Porque nos falta o arrojo e a criatividade de desenhar uma Igreja assim, que comece no coração do homem, prospere na realidade doméstica, trespasse os ambientes do mundo e se projete plenamente no que somos: comunidade? Em que lugar da história nos desencontramos desta nossa natureza de peregrinos que se abandonam ao Pai, sem pão nem alforge, para nos viciarmos em propostas de multidões que nos recusamos ver definhar?

Em palavras que por estes dias tem ainda uma carga mais profética, o Papa Francisco reclamou uma “Igreja em saída”, alguns anos depois a densidade do período que atravessamos parece configurar um daqueles momentos da história em que tudo muda. Como cristãos não temos direito ao pessimismo – Cristo estilhaçou-o na cruz – mas talvez seja chegada a altura de assumirmos as mudanças que precisamos, encarnando o estado da nossa primeira natureza: estes são dias de Êxodo!

É altura de fazer novas perguntas, de ver as novas realidades que conformam por exemplo o universo infantil e juvenil que já não funciona de forma linear e narrativa, mas sim num zapping de redes e conteúdos que não admite nada estático e fechado; é tempo de perceber como se amplia o espaço celebrativo das comunidades para todas as plataformas existentes, e como se assegura a coerência e assertividade nos diferentes canais; é hora de reaprender o valor das micro relações entre indíviudos e grupos, e saber como a Igreja pode intervir nesta geometria variável; é momento para nos assumirmos como lugar aberto à inovação e criatividade para nos configuraramos com a proposta de Cristo de tudo refazer.

É tempo de fazer uma escolha: ou se escolhe estar quieto desejando tornar a comer as cebolas do Egipto, ou Êxodo, que nos conduz à terra prometida!

# fique em casa

Padre Nuno Santos - Reitor Seminário Maior de Coimbra

O tempo é de quaresma e de quarentena.

Estamos ‘fechados’ em casa uns dias para evitarmos que mais pessoas fiquem fechadas para sempre dentro de um caixão. Os números são assustadores na china, em Itália e em Espanha... procuremos que não o sejam também em Portugal.

Esta é a hora de fazermos todos a nossa parte e de agradecer a tantos que todos os dias dão o melhor de si nos hospitais, nos Cuidados Continuados, nas IPSS’s, nos Centros Sociais paroquiais, nas diferentes valências da nossa Caritas...

Mas esta também é hora para pensarmos no valor das pequenas coisas, na importância dos pequenos gestos... Somos homens e mulheres de fé que acreditam na força de Deus. Por isso, lhe pedimos, como os discípulos de Emaús, ‘fica connosco porque anoitece’.

Este é tempo também para nos recriarmos pastoralmente, para pensarmos soluções novas de presença... Como continuar a levar Deus às pessoas e à vida concreta de todos os dias?

O Seminário quis apostar na Eucaristia dominical. Nesse sentido, domingo após domingo procuramos chegar a casa das pessoas com mais qualidade e com mais proximidade. Nestes dias somos uma comunidade alargada de mais de mil e quinhentas pessoas (para além de Portugal, há pessoas que nos acompanham do Brasil, da Bélgica, França, Inglaterra, Polónia). Podem acompanhar-nos no canal do Seminário Maior de Coimbra no YouTube ou na página da Comunidade das 11 no Facebook.

Claro que podíamos fazer mais coisas, mas já há muitas propostas na net (missas diárias, terço, reflexões, orações, conferências...) O importante é sentirmos que os meios de comunicação sociais são instrumentos de graça e da ação de Deus.

Que este tempo nos ajude a ‘saborear’ o estar em casa, a força das relações familiares, a graça de nos sentarmos à mesa, o privilégio que é rezarmos em família... sentir que Deus também fica em casa – fica em cada uma das nossas casas.

Não à Eutanásia, sim ao referendo.

José Afonso Baptista

Independentemente das questões religiosas, a aprovação da eutanásia terá consequências muito além da “liberdade de escolha” daqueles que a solicitarem, pois obrigará a modificar radicalmente um dos pilares centrais dos valores da Sociedade, do edifício do Direito e dos princípios milenares da Medicina, que evoluíram para uma efectiva salvaguarda da dignidade das pessoas e do direito à vida, a uma vida que cumpra com humanismo os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Da total proibição de matar, passaremos a viver numa sociedade que permite matar pessoas em sofrimento (teoricamente apenas a seu pedido), sem lhes proporcionar outras condições, sem fronteiras bem definidas e sem salvaguardas legais protectoras eficazes. As consequências são previsíveis e estão documentadas. Uma decisão de tal impacto e gravidade só pode ser tomada com um participado debate nacional e em referendo. Afinal, quem tem medo deste debate e da decisão livre e esclarecida do povo?

O projecto de Lei do PS permite que a eutanásia seja requerida por “pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal”, havendo a preocupação de nem sequer referir doentes terminais e aceitando a antecipação da morte em dias, semanas, meses ou anos, numa subjectividade extrema, ampla e perigosa de definições e potenciais aplicações.

Entre outros problemas, não se pode ignorar a confusão de conceitos relativamente à eutanásia, que muitos desconhecem que envolve o acto de matar alguém (não é apenas deixar morrer), a rampa deslizante do alargamento progressivo da sua aplicação, transformada numa ‘terapêutica’ simples, barata e eficaz para qualquer tipo de sofrimento (...), a banalização da cultura da morte, com pessoas eutanasiadas sem o requererem, e o tremendo bullying familiar a que muitos vão ser submetidos para “pedirem” a eutanásia.

Não é aceitável que o Estado, que tão gravemente negligencia os Cuidados Paliativos, os Apoios Sociais e o acesso aos Cuidados de Saúde, se prepare, sem um amplo debate prévio, para oferecer a antecipação da morte como uma/única “opção”. Matar nunca poderá ser um acto médico.

Recorda-se que, com a Declaração Antecipada de Vontade, ou outra forma de expressão do seu não consentimento, o doente já tem a tranquilidade de saber que nunca será submetido a tratamentos ou intervenções que não pretenda ou que possam configurar distanásia (encarniçamento terapêutico) e prolongar o seu sofrimento sem perspectivas de recuperação.

Com os recursos farmacológicos e tecnológicos existentes não faz sentido falar-se hoje em dor descontrolada ou incontrolável. Há meios suficientes, assim as pessoas lhes tenham acesso, para proporcionar um fim de vida com qualidade aceitável, sem medo da agonia da morte, sem sofrimento exagerado, com todo o respeito e carinho pela pessoa em fim de vida e, de preferência, no seio da família.

A vida e a morte são sempre dignas na sua essência, independentemente dos contextos. A dignidade reside nas próprias pessoas, não no tipo de morte, e a ‘escolha’ da morte nunca é uma opção genuína, a nossa natureza é a vida.

A escola inclusiva

José Afonso Baptista

Os professores aprendem num tempo que estará ultrapassado quando ensinam. A sociedade que os forma não é a mesma que requer o seu trabalho. Este é o grande paradoxo da educação que tende a refletir um desfasamento em relação ao mundo atual.

A “boa escola” define-se hoje como uma escola aprendente, reflexiva, capaz de se melhorar a si própria para atingir os melhores resultados. É a escola que é capaz de viver no seu tempo real. É a sociedade que muda a escola e é melhor a escola que sabe interpretar a sociedade em que se insere.

Dois princípios definem o paradigma educacional a partir da segunda metade do século XX, universalidade e inclusão. Estes princípios estão na origem de uma mudança profunda nas finalidades da educação. O reconhecimento do direito de todos à educação inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) marca o início de sucessivos movimentos que conduzem a um novo modelo de escola, a escola inclusiva, assim designada e proclamada pela comunidade das nações e organizações internacionais na Conferência de Salamanca de 1994.

A evolução do paradigma da exclusão para o da inclusão tornou-se inevitável face às motivações políticas, sociais e económicas que impulsionaram esta viragem. Ao contrário do que acontecia nas sociedades rurais e pré-industriais, na sociedade do conhecimento e da informação não existe espaço para os analfabetos.

O fenómeno da exclusão escolar é ainda uma calamidade que assola o mundo inteiro, ao destruir a esperança de tantas crianças e jovens e ao desperdiçar o potencial criador e construtivo que resultaria da educação de todos. Cerca de mil milhões de cidadãos em todo o mundo ainda estão excluídos do acesso à leitura e à escrita, impedidos de beneficiar das novas tecnologias, de participar numa sociedade assente nestas competências, comprometendo a sua integração na vida social e no mundo do trabalho.

Reside aqui a importância e a urgência da escola inclusiva, uma boa escola que não deixe ninguém de fora nem para trás, que saiba ler e interpretar o mundo de desigualdades, de diferenças e de degradação das condições de vida e de precaridade no mundo do trabalho. A escola inclusiva tem de estar em consonância com a revolução científica e tecnológica que nos surpreende a cada dia, com a revolução da bioengenharia e da inteligência artificial, construindo competências e afirmando valores de cooperação e solidariedade para enfrentar os perigos que nos ameaçam.

A retórica da inclusão centrada no currículo e nas aprendizagens, impondo os programas e as práticas do passado, transmissivas e repetitivas, e submetidas ao exame igual para todos, não promovem a iniciativa e a criatividade nem respeitam as diferenças. A escola inclusiva tem de centrar-se nas pessoas, nos seus problemas e nas suas motivações, tem de centrar-se nas diferenças, de cor, de género, de religião, de partido, de clube, de ideologia, para aprender o respeito pelo outro e enfrenar juntos as ameaças do mundo onde vivemos. Construímos o mundo com e não contra os outros. O défice do mundo atual não é tanto de informação, é mais de formação das pessoas, da sua educação para os valores da paz e da harmonia que superem as diferenças e sempre que possível as desigualdades.

2020 será um ano de graças

Padre Nuno Santos - Reitor Seminário Maior de Coimbra

2020 será muito do que juntos conseguirmos concretizar.

Os desafios são sempre maiores do que nós mesmos, mas a capacidade de darmos as mãos e a confiança em Deus é capaz dos maiores milagres.

No Seminário Maior de Coimbra vamos avançar com a requalificação do edifício central e algumas obras nos outros dois edifícios. Será tempo de concretizar um programa e um projeto que anda a ser ‘desenhado’ há muito tempo e que sentimos tanta falta.

Requalificar, remodelar e reconstruir só faz sentido se for a pensar nas pessoas e nas atividades a que se destina o seminário. Este seminário terá de ser sempre casa para os padres e para os seminaristas, lugar de oração e de formação pastoral, espaço de discernimento e acompanhamento vocacional, possibilidade de realizar retiros, casa para acolhermos peregrinos e pessoas que nos procurem pelo que somos e pelo que oferecemos.

Tudo isto deve ser sempre conjugado pela espiritualidade e pela arte, pelo passado e pelo presente, pelo que já somos e pelo que podemos ser, pelo silêncio e pela palavra, pelo turismo e pela fruição, pela refeição e pela contemplação.

Em 2020 queremos continuar a escrever a história longa deste seminário, sem esquecer o seu percurso, mas consciente dos novos contextos e dos novos desafios.

Vamos precisar de todos. Vamos precisar da oração e da partilha económica. Vamos precisar que mais sintam ‘amor’ por esta causa e por esta casa.

Com a graça de Deus e empenhados no mesmo compromisso, juntos faremos a diferença.

A Igreja é Comunicação

João Bento

O Plano Pastoral Diocesano para o triénio de 2017 – 2020, sob o lema “Aproximai-vos do Senhor”, contempla três objetivos: evangelização, espiritualidade e organização. De acordo com o estabelecido, neste ano pastoral, o focus da ação estará no dinamismo organizativo e no dinamismo da comunicação. Teremos como frase chave: “O que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos” (1 Jo 1, 3). Ver o Senhor, ouvir o Senhor e anunciar o Senhor são os elementos chave deste percurso que a Diocese de Coimbra, pretende com “ousadia” intensificar e desenvolver ao longo deste ano.

Assim, conscientes que enfrentamos novos desafios, a Organização e a Comunicação assumem, de facto, um objetivo estratégico que irá continuar a concentrar esforços e energias nos próximos tempos, no intuito de reforçar a identidade da Diocese e da Igreja. Estaremos aptos e preparados para interpretar os sinais dos tempos?

Como vivemos e comunicamos hoje, diante das novas exigências, novos públicos, novos comportamentos, novas competências e também novas prioridades? Afinal, todos nós somos hoje, atores da comunicação.

Desta forma, a Diocese de Coimbra, procura dar mais um passo e empenhar-se um pouco mais na procura de modelos diferentes, fazer um caminho consolidado e com alguma ousadia, precisamente para perceber como é que a Igreja pode conhecer melhor o território, as periferias e estar próxima da vida das pessoas.

Que proposta de valor e como poderemos contribuir para a modernização e adaptação da Igreja de Pedro à sociedade do século XXI?

Devemos registar e reforçar a iniciativa em curso - “Assumir a unidade pastoral como a estrutura pastoral base na organização da diocese”, numa perspetiva de renovação e de definição de um novo perfil organizacional, já que pretende ser um lugar de corresponsabilidade de todo o Povo de Deus, particularmente através dos órgãos previstos: o conselho pastoral e a equipa de animação pastoral.

Sabemos também que sozinhos não seremos capazes de alcançar os propósitos que nos movem. A própria nota pastoral, apela, numa perspetiva de abordagem integrada, para que todas as unidades pastorais com mais potencialidades estejam ao lado das que têm menos meios e que todos - sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos – deem o seu contributo pessoal para que nenhuma comunidade caminhe a um passo demasiado lento ou corra o risco de ficar para trás.

Impedir a “globalização da indiferença” e, contribuir para “a cultura do encontro” são frases do Papa para a coexistência e construção de uma única família humana. Sabemos que se trata de um exercício tão exigente quanto difícil. Nunca está “tudo feito”, Francisco diz, que o maior temor da Igreja deve ser o de “cair numa fé sem desafios” ou horizontes, porque se considera “plena, completa”.

Com efeito, a própria fé é uma relação, um encontro e a missão da Igreja é comunicar com a ação concreta dos seus membros a favor das pessoas necessitadas.

O que não se vê, o que não se ouve, o que não se lê... Não existe. Se deixarmos de comunicar, deixamos de ser Igreja, porque a Igreja é isso mesmo, é comunicação.

Sabemos que uma comunicação eficaz tem o poder de aumentar a visibilidade e a notoriedade institucional, para além de promover o diálogo, de influenciar, reter e desenvolver competências.

Deste modo, é inevitável para um crescimento sustentável da Igreja, que esta deva comunicar por objetivos, com autenticidade, deva profissionalizar-se, estar presente na comunicação digital, deva assumir uma mensagem positiva, clara, lúcida e menos “cor-de-rosa”. O conteúdo precisa de ser simples, claro e comprometido com a verdade.

Precisamos de ter uma estratégia e focar mais nas pessoas. Toda a mensagem deve ser relevante para quem ouve, ser feita a uma só voz, de forma coerente e assertiva. Deve ser dirigida a todos e não apenas aos cristãos e deve decorrer de um plano estratégico estruturado e elaborado pela Diocese, resultado do envolvimento de toda a comunidade, permitindo a partilha de conhecimentos e a assunção da sua operacionalização.

Em síntese e reforçando, desde já, as diretrizes programáticas do Plano Pastoral com repercussão nas paróquias, unidades pastorais, arciprestados e serviços diocesanos com vista a alinhar o modus operandi com a estratégia definida, teremos de passar da pastoral da resposta à pastoral das perguntas, da pastoral centrada nos conteúdos à pastoral centrada nas pessoas, da pastoral da transmissão à pastoral do testemunho, da pastoral da propaganda à pastoral da proximidade, da pastoral das ideias à pastoral da narrativa, da pastoral da interatividade à pastoral da interioridade.

Comunicação: Call to action para a missão

Sílvia Monteiro

Vivemos num tempo e numa cultura de mudança que é preciso encarar e abraçar, de forma a compreender o mundo novo em que se insere a Igreja nos nossos dias. Há fenómenos novos que exigem resposta, há modelos que já não servem o presente, é urgente procurar novos caminhos para construir uma presença forte da Igreja na sociedade, capaz de fazer a diferença, capaz de iluminar a humanidade.

Comunicar em Igreja não é apenas um trabalho de publicidade ou difusão de conteúdos, exige a transmissão do evangelho como testemunho, de forma positiva, credível e autêntica, numa perspetiva de encontro com o próximo.

No tempo presente, a vida é marcada pelas redes sociais, que mudaram radicalmente a forma de comunicação e relação na sociedade. Estas redes constituem um desafio para as competências comunicativas da Igreja, mas são, sem dúvida, uma nova oportunidade de construir laços, promover a comunhão, desenvolver a solidariedade e o respeito pelo outro.

O mundo digital não é um mero instrumento para usar, mas sim “um lugar” para habitar, focado nas pessoas, nas suas necessidades e na sua fome de Deus. É urgente trazer a voz da Igreja e as suas propostas para estes espaços. Os cristãos são chamados a estar neste mundo digital como testemunhas do amor de Jesus Cristo, assumindo, com responsabilidade e espírito de missão, uma cultura de verdade, solidariedade, defesa da dignidade da pessoa humana e respeito pela vida.

O Papa Francisco apresenta-nos a ternura como o verdadeiro canal de comunicação em Igreja. A ternura é o amor que se faz próximo e concreto, implica a capacidade de olhar, tocar, abraçar, inclinar-se para chegar ao próximo, deixar-se alcançar, numa atitude de escuta para perceber as necessidades do outro.

É fundamental despertar em cada cristão esta consciência de estar nas redes e ser um sinal de esperança no mundo em que vivemos, encher a realidade de sentido e dar respostas a um mundo que cada vez mais se interroga.

Nas palavras do nosso Papa, “para a Igreja, a comunicação é uma missão. Nenhum investimento é muito alto para difundir a Palavra de Deus”.

A comunicação é um dos grandes desafios das estruturas da Igreja, que requer visão, planeamento a médio e longo prazo, profissionalismo e aquisição de competências nas suas diversas áreas, mas que exige acima de tudo comunicadores apaixonados por Jesus, pela missão e pelo próximo.

Em cada Diocese, a comunicação deve estar ao serviço de todos, facilitando o trabalho, o conhecimento e a interação das paróquias, instituições, secretariados, agentes pastorais e leigos em geral, em união fraterna com o seu Bispo. A comunicação deve ter como objetivo construir pontes, unir e partilhar a beleza de sermos irmãos em Cristo, num tempo tantas vezes marcado por divisões no seio da Igreja.

Somos uma Igreja pobre em recursos humanos, técnicos e materiais, pelo que precisamos de unir esforços, colaborar em vez de competir, compreender que a nossa força está na unidade, no ser membros de um único corpo do qual Cristo é a cabeça. Só desta forma poderemos responder às exigências da missão da Igreja.

Jesus desafiou-nos a sermos uma Igreja em saída: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda a criatura” (Mc 16,15).

Hoje, como sempre, somos convocados por Jesus para a missão. Os caminhos poeirentos de ontem deram lugar às autoestradas e cidades de hoje, também elas cheias de falsos profetas e vendilhões de soluções fáceis. Em dois mil anos, mudaram as ferramentas de comunicação, mas a missão permanece a mesma. Cada um de nós, Igreja em comunhão com Cristo, é chamado a esta missão crucial: ser um cristão do século XXI, anunciando sem temor que Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida.

Tenhamos a coragem de sair do conforto das nossas igrejas e dos nossos grupos católicos para anunciar a todos, com ternura e alegria, a esperança que Jesus nos dá, de forma a tocar e dar um sentido à vida de todos aqueles disponíveis para acolher a Sua mensagem.

Vamos responder com entusiasmo a esta renovada missão?

O entusiasmo dos inícios e a entrega de sempre

Padre Nuno Santos - Reitor Seminário Maior de Coimbra

Estamos de regresso para mais um ano pastoral e académico. É tempo de retomar ritmos e dinamismos, é tempo de voltar à coragem de novos olhares, é tempo de assumir o entusiasmo das grandes entregas.

Iniciamos caminho estimulados pelo Plano Pastoral que nos desafia a aproximar do Senhor. Um caminho que, neste ano concreto, aposta na organização e na comunicação. Queremos reforçar estes dois dinamismos que já vamos assumindo.

O caminho percorrido e o feedback que vamos recebendo enchem-nos de alegria e confirma o sentido de tanto empenho. As muitas atividades e as múltiplas iniciativas querem apenas reforçar o acolhimento, a abertura e o anúncio feliz do evangelho aos homens e mulheres de hoje – na concretização de uma ‘Igreja em saída’.

Neste início de ano congratulamo-nos com os nossos 7 seminaristas: Rúben Cunha (1º ano); João Miguel (1º ano); João Mota (2º ano); Carlos Gregório (2º ano); David Silva (2º ano); Vítor Pauseiro (4º ano) e o António José (7º ano). Que o Senhor seja sempre a sua inspiração e a sua força.

Neste ano vamos finalmente avançar com as obras no edifício central, depois de um longo caminho de três anos: definição do projeto, aprovação da arquitetura, aprovação das especialidades, revisão do caderno de encargos, consulta às empresas.... Estamos na fase final da adjudicação da obra e na estruturação do financiamento. Queremos muito dar este passo para podermos servir melhor a Diocese. Vamos precisar da ajuda de muitos.

Que o Seminário Maior de Coimbra continue a cumprir a sua missão sem ficar a “sonhar com as ‘cebolas do Egito’ (Nm 11, 5), esquecendo que a Terra Prometida está à frente, não atrás” (Papa Francisco, Maputo 2019).

Uma Economia que Mata

João Bento

A escolha do modelo de mercado é hoje uma questão central. Os mercados não são todos iguais. Há um mercado que reduz as desigualdades e um outro que as explora. Trata-se de um mercado incivilizado que exclui e conserva as "periferias existenciais" ao longo do tempo. O alerta vem do Papa Francisco na sua exortação apostólica – Evangelii Gaudium.

Nesta exortação, profere algumas frases polémicas geradoras de um debate que não parou até hoje. E salienta: “Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado” (EG 204); “Devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata” (EG 53).

A última expressão seria assim o gatilho para um soundbite extraordinário, especialmente depois de ser retirada do seu contexto e considerada chocante, indo ao ponto de ser rotulado como comunista. Para Francisco a dedicação aos pobres não é uma invenção de Karl Marx, é algo que está presente no Evangelho.

Francisco insiste na urgência de agir, colocando as pessoas no centro como principal argumento contra a “economia que mata” e a “cultura do provisório”. Condena a cultura atual, por ser um sistema que promove a “cultura do descartável” e da “globalização da indiferença” e defende uma globalização de identidades, de esperança e de povos que praticam, quer dentro de si mesmos, quer entre si, uma verdadeira cultura do encontro.

Na encíclica “Laudato Si”, sobre o cuidado da casa comum, o Papa leva mais longe o seu olhar sobre a crise sistémica que vivemos. A “violência” das palavras de Francisco tem aqui maior expressão, na medida em que já não é “esta economia”, mas “a” economia, que condena abertamente.

Francisco convoca-nos a todos, Estado, Igreja e Comunidades, apelando à responsabilidade perante os problemas “da economia” que atinge as populações mais carentes e desfavorecidas, idosos, crianças, migrantes, pobres e desempregados, e que resulta do fascínio tecnológico e da idolatria do dinheiro, originando a miséria de tantos. Questiona ainda o relacionamento entre Estados, política e economia, subdesenvolvimento e fome, crise ecológica e ambiental, biodiversidade, natalidade, desigualdade social e ecologia social, etc.

A finalidade da empresa é criar valor. O lucro é uma pequena parcela desse valor. A empresa tem que criar valor económico, social, ambiental, cultural, pessoal e comunitário, valor para a sociedade. Ou seja, as próprias pessoas também têm de sentir essa criação de valor. As universidades e todas as organizações tem de ser laboratórios de esperança para novas formas de compreender a economia e o progresso, combater o dumping social, a corrupção, a cultura do desperdício, dar voz a quem não tem, que permitam às pessoas viver e não matar, incluir e não excluir, humanizar e não desumanizar.

A economia somos nós, comportamentos e consumos, deve contribuir para a promoção do crescimento integral, apelando a valores como solidariedade, equidade, justiça, liberdade e amor ao próximo. É na vida concreta da comunidade, ‘rostos e nomes’, que se define o encontro contínuo, temos de ser cada vez mais “Igreja em saída, alegre e inquieta”.

Se esta economia mata, que economia nos manteria vivos? Como passar de uma economia de exclusão para uma economia de comunhão? Uma economia com Alma? Uma economia de cidadãos ou de consumidores? Como enfrentar a globalização da indiferença?

Paulo Freire diz que uma transformação somente é válida quando feita pelas pessoas e não para as pessoas. Francisco desafiou recentemente os jovens para serem os “protagonistas da mudança”.

Podemos encontrar no Evangelho e nas práticas quotidianas, a chave que nos permite enfrentar os desafios atuais, valorizando as diferenças sem exclusões…Jesus é um homem de periferia, está no DNA do cristão.

7 voltas para a muralha cair

Martinho Soares

A palavra periferia deriva etimologicamente do grego e significa qualquer coisa como “circunferência”, “levar à volta”, “rodear”, “fazer circular”. Dos múltiplos sentidos e suas nuances, ressalta a ideia homonímica de circular, nas categorias gramaticais de adjetivo e verbo. Hoje, o termo é usado em múltiplas aceções e pode aplicar-se a campos tão diversos como os sociais, económicos, geográficos, artístico-culturais, etc. É certamente nos marginalizados da sociedade, pobres, imigrantes e refugiados incluídos, que pensa o Papa Francisco, quando usa e populariza o termo. Por norma, estes coincidem no espaço com a cobertura geográfica do conceito, que são as periferias dos grandes centros urbanos ou dos continentes mais ricos, como a Europa e boa parte da América. Nas franjas das áreas artísticas e culturais, não é difícil situar as vanguardas e as correntes alternativas, como começou por ser – só para dar um exemplo – o cinema e a música Indie, antes de terem vindo ocupar o centro. Todas estas fronteiras são muito porosas e intermutáveis.

O ciclo de “Curtas com conversa” que temos promovido em torno deste conceito nuclear, permite-nos já fazer um balanço e destacar uma série de ideias: 1) há as periferias da natureza: florestas autóctones e amigas da biodiversidade, que antes ocupavam o centro ou a maioria do território e foram empurradas para as margens para dar lugar às grandes monoculturas intensivas; 2) o corpo é a nossa primeira fronteira e limite periférico na relação com os outros, sendo esse limite passível de se restringir a um único movimento do dedo, ainda assim insuficiente para impedir completamente o ser humano de se relacionar com os outros seres que o rodeiam; 3) há periferias bem frequentadas, como sejam as periferias do tempo lento, escolhidas por quem quer habitar sem as pressas e as acelerações impostas pelas novas tiranias digitais, laborais, consumistas.

No fim de tudo, uma certeza: não há muralha tão inexpugnável que não ceda ao assédio persistente das periferias: sejam elas abaladas por poderosas trombetas, como as de Jericó (Js. 6); por cavalos de madeira infiltrados, como as de Troia; ou por selvagens desesperados como os que escalam a grande muralha de gelo em A Guerra dos Tronos. Podem não cair à primeira nem à segunda nem à terceira volta, talvez não resistam à sétima (arte); por isso, continuaremos com as nossas curtas a derrubar muralhas.

A periferia tem muitos lados

Maria Manuela Rato

Há uns anos atrás li um texto de um amigo que hoje me remeteu para o tema - Periferias.

Este, falava de um homem que se encontrava à porta do Metro, numa manhã fria de Inverno onde tocou, quase durante uma hora ininterruptamente várias peças de Bach. Era hora de ponta! Passaram por ele centenas de pessoas… poucos repararam e pararam… todos estavam cheios de pressa para os seus trabalhos… não havia moedas, não havia aplausos.

Este Senhor era um violinista famoso dos mais talentosos do mundo, tinha tocado algumas das peças mais elaboradas; e o seu violino valia alguns milhões de dólares. Dias antes de tocar aqui, este violinista tinha esgotado um teatro numa cidade nos Estados Unidos, onde cada lugar custava em média 100 dólares.

Como esta historia me deixou a pensar, onde está o centro? Onde nos centramos?

Tudo nos chega de forma tão natural e simples mas, no quotidiano da nossa Vida, na pressa, nos afazeres do trabalho, nas rotinas que temos, deixamos o Centro de tudo - DEUS e, passamos a viver nos arredores, nos subúrbios do essencial, na periferia; rodamos, rodamos até ficarmos tontos e não nos apercebemos da beleza de tantas coisas que nos chegam todos os dias, todas as horas, todos os minutos.

É tão fácil passar no lado contrário, ou do outro lado, passar à frente, não ouvir, ou não ver… passamos a Vida tão atarefados, com um ar tão preocupado, tão tristes adotamos comportamentos destruidores do próximo e de outras criaturas; sobrepõe-se a intemperança, levando a um estilo de vida que viola os limites que a nossa condição humana e a natureza nos pedem para respeitar, seguimos aqueles desejos incontrolados que, no livro da Sabedoria, são atribuídos a quantos não têm Deus como ponto de referência, nem esperança no futuro.

Estejamos voltados continuamente para a Páscoa de Jesus, para o horizonte da Ressurreição! Pedimos a Deus que nos ajude a realizar um caminho de conversão;

Não deixemos que nos passe em vão, este tempo favorável!

A periferia da geometria é O centro

Rui Fernandes

(…) e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo (…)

Para um arquiteto a geometria euclidiana é a primeira linguagem e as medidas o vocabulário mais básico. Nestas primeiras noites de Primavera gosto de olhar o firmamento e recordar o absurdo das distâncias que compõe o Universo: olhar para o cintilar das estrelas e recordar que a luz de muitas delas é apenas a viagem dos seus feixes óticos já que a fonte luminosa há muito se extinguiu, redimensiona a nossa escala (para mim ainda abstrata) e traz uma noção mais exata do quão periféricos somos na vastidão universal.

Aqui chegados, esta tomada de consciência pode ter muitas direções. Creio que a mais urgente é interiorizar a escassez que é esta bola azul enquanto suporte para a vida humana, e como esse facto reclama uma reconversão do nosso entendimento de humanidade na história, como tão bem nota o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si; e que foi o tema da primeira sessão do programa Curtas com Conversa que decorre no Seminário, porém gostava nestas linhas de fazer um exercício mais básico de mapeamento da geografia de Cristo…fazer a volta ao contrário!

A liturgia deste tempo da quaresma apresenta-nos Cristo na sua derradeira itinerância antes de se dirigir a Jerusalém, para o seu ato inicial (final). São um conjunto de paisagens “periféricas”: bordas de um lago, deserto, estradas e caminhos, cenas a meias entre este mundo e o outro, tentações, imperfeições e provocações...há de tudo! Tudo menos a cidade canónica, das ruas, praças, templos e tribunais, essa está reservada para a explosão final. Se conseguirmos mergulhar a fundo nesta viagem chega a dar tonturas, Cristo está feito um cometa em aceleração imparável, orbita o mundo em elevada vertigem e aponta já ao centro do centro: em três dias destruirá e refará o Templo.

O nascimento do Cristianismo é uma viagem das periferias para o centro, é o desenho e movimento de Cristo que o obriga. É uma emergência em deixar a margem, é a consciência que não basta ficar a habitar uma tenda na montanha, ou apenas eternizar a peregrinação nos caminhos secundários: o encontro com Cristo tem uma direção central, Ele projeta-nos na história e convoca-nos a um roteiro preciso, no relato de Lucas: e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.

O programa do Cristianismo é uma irradiação: a partir de Jerusalém desenham-se anéis concêntricos da Judeia, Samaria a Coimbra e até aos confins do mundo…é esta novidade que inverte a geometria das nossas noites de contemplação do firmamento. A partir do momento que Cristo irrompe na vida de cada um, também nós somos chamados a fazer a viagem que altera todos os sentidos: o amor de Cristo e a sua promessa do Reino faz de cada um o centro da história. A vastidão do universo é só uma imensa periferia…

É aqui que ganha todo o sentido o apelo do Papa Francisco: a imagem de uma Igreja em saída, que se procura e projeta nas periferias existenciais do homem, é novamente a convocatória ao projeto seminal de Cristo, é um grito para que cada um de nós se conforme com a imagem da peregrinação d´Ele até Jerusalém e que o façamos com o itinerário completo: visitando os desertos, clamando por entre as multidões, pisando todos os caminhos e bordeando todas as margens: é aqui que está o que falta ao centro…as periferias.

Comunicar com as periferias: opção estratégica ou missão evangelizadora?

Sílvia Monteiro

Somos Filhos de Deus, criados por Ele à sua imagem e semelhança.

Como sabemos isto? Sabemo-lo porque o nosso Deus não é apenas um Deus Criador, É um Deus comunicador, que acompanha o ser humano desde a conceção até à vida eterna.

Quem melhor para comunicar Deus e a Sua mensagem, que o próprio Deus feito homem e nosso irmão, um Deus que se pode ver e ouvir, seguir ou ignorar, com quem se pode comunicar e de quem se pode receber a Palavra, de forma simples, clara e verdadeira. Podemos dizer que Deus, ao fazer-se Homem, comunica, comunica-se.

A quem é dirigida a Palavra de Deus, a sua comunicação? A todos? Certamente que sim. Mas a quem é particularmente dirigida? Esta resposta é claramente dada por Deus quando escolhe fazer-se um de nós na pessoa de Jesus.

Em vez de aparecer aos homens em Roma, centro do mundo de então, nasce numa manjedoura numa pequena localidade nos confins do mundo. Ao invés de tomar rapidamente o poder, associando-se às elites, tem inicialmente uma existência pacata numa família humilde e, quando inicia a vida pública, escolhe como companheiros pessoas simples ou olhadas de lado pela sociedade: pescadores, cobradores de impostos, agitadores políticos... Não foca a sua atenção nas pessoas e estruturas centrais, dirigindo-se antes às pessoas menos valorizadas naquele tempo: mulheres, crianças, pobres, doentes, portadores de deficiência...

Podemos então concluir que as periferias estão no centro do Evangelho, o que é periférico para a humanidade, é central para Deus. Deus quer-nos no centro e quer ser o nosso centro; somos nós que frequentemente O relegamos para a periferia e, consequentemente, construímos sociedades em que os mais fracos, os pobres, os estrangeiros, os doentes, os proscritos são atirados para a periferia.

Deus, porém, ama as periferias e impele-nos a comunicar com todas as periferias, a aprender com elas a amar a Deus, a praticar o Amor e a Justiça.

Se eu sou cristão, amo as periferias. Se eu sou Igreja, tenho de comunicar a Boa Nova de Deus às periferias, torná-las o centro da minha vida, da minha comunidade, do meu projeto de santidade. Se Jesus Cristo veio para as periferias, amou as periferias, morreu pelas periferias, também nós temos de lhes dedicar uma atenção especial, pois nelas está o futuro da Igreja e da Humanidade. Comunicar com as periferias é imitar Jesus Cristo, o Caminho, a Verdade e a Vida.

Como comunicar com as periferias? Queremos converter as periferias ou converter-nos às periferias?

A primeira opção implica que eu sou sábio e as periferias ignorantes e se eu acredito nisto, então jamais compreenderei as periferias. A segunda opção implica ter a humildade de ouvir as periferias, entender os seus problemas e anseios, identificar os seus atos diários de heroísmo e, dessa forma, perceber que elas estão muitas vezes bem mais perto de Deus do que nós e que, se deixarmos, poderão salvar-nos de nós próprios, da nossa superioridade e arrogância e mostrar-nos o verdadeiro Deus, menino na manjedoura em Belém, cordeiro imolado no Calvário, Salvador eterno relevado em Emaús, em Coimbra e em todo o universo.

Não tenhamos dúvidas, comunicar com as periferias, de cada um de nós, da nossa comunidade, do nosso país, da Igreja e do Mundo tem uma tripla dimensão: ir ao encontro do outro, ir ao encontro de nós próprios, ir ao encontro de Deus, da Sua palavra e da Sua salvação.

Por tudo isto, comunicar com as periferias não é uma opção estratégica ou politicamente correta é, isso sim, a principal vocação da Igreja e de cada cristão e o único caminho que conduz a Deus, uno e trino, presente e futuro!